terça-feira, 5 de julho de 2011

A Lenda de Copas



                                           I


 Seu nome era Wilhelm. Já fazia dois dias que estava jogando Whist no mais antigo cassino de sua cidade. Apostara a chácara que herdara de seu pai. Desta vez ganhara.
  Saiu com a letra; quase caiu quando tentava descer as escadas do segundo andar.
  Quando chegara em casa guardara a letra em seu peito e dormiu profundamente. Morava em uma casa a duas esquinas do novo cassino, soubera da notícia com um ex-colega de repartição, pois já fazia um ano em que não trabalhava, vivia apenas gastando o legado que seu pai lhe deixara. Esse colega lhe apertara a mão e perguntou como ele estava, já fazia um ano precisamente que ninguém o tocava e perguntava como ele se sentia.


                                            II


 Estando a caminho do cassino, queixou-se consigo como pudera ter ficado tanto tempo sem pensar em si mesmo. Quando pode enfim ver o novo local que passaria boa parte do seu tempo reparou que era um recinto alegre, coisa que não sentia desde que perdera seus pais. Estava só no mundo. Fora oficial de gabinete da repartição, dez anos ininterruptos e sem faltas, quando de repente foi convidado por um amigo já falecido a ir visitar o novo cassino da cidade. Como não conhecia a necessidade impulsiva que viria a domina-lo em seguida, foi com a maior disposição e alegria desse mundo, apenas para não o incomodar. A cada novo dia que passava em companhia, nesse ano, eram novos sentimentos que brotavam-lhe. O que era incrível que sozinho pudera notar que esse cassino não tinha a vitrine principal negra, como os da maioria. Era transparente como o reflexo dos seus olhos e da crupiê, que estreando, embaralhava as cartas. Ele pode ver uma carta sendo misturada as outras, era uma dama de copas. Ficou absorto nessa contemplação e então colocou as mãos nos bolsos e pensou alheio a tudo aquilo. Depois disso foi se sentar no canapé que estava a alguns metros da mesa do jogo. A crupiê trajava um libré vermelho. Ficou reflexionando a cabeça umas cem vezes seguidas. Passou umas três horas vendo-a embaralhar as cartas em conjunto com seu sorriso inexpressivo. Ele teve que voltar para a casa. O jantar com certeza já estava na mesa. Queria convidar a crupiê para ir com ele, mas não lembrara de ter trazido a carteira e ela passaria a noite no local.


  Quando chegou em casa a sopa já havia esfriado, mas comeu ela assim mesmo.
  A empregada já havia ido dormir em seu quarto. Foi quando teve um inicio de dor de cabeça, tentou afastar de si com a idéia de algo novo e perigoso, mas sequer pode ter uma momentaneidade de vencedor, compreendera que era uma dor veterana, de longos tempos. Então resignado, ajeitou o melhor que pode o feixe de cabelos anelados junto ao travesseiro, puxou o edredom até o pescoço e aguardou o próximo dia.




                                        III  


  Pela manhã acordou como de costume e se arrumou para ir a sua nova ocupação.
  Seu coração batia descompassadamente, quando se aproximou do cassino.
  Viu logo na chegada a crupiê, era a mesma que havia visto no dia anterior. Ela tinha virado a noite. De súbito teve uma idéia, mas quando viu os olhos dela teve um estremecimento imperceptível análogo ao inexpressivo olhar dela. Teve vontade de vomitar. A mesma dor da noite passada que velara junto a ele o sobressaltou. Voltou a amainar-se. Só retrocedeu por completo quando ele pode se sentar no canapé, que também estava ocupado por uma velha senhora. Esta cena se repetiu durante duas semanas consecutivas. Sempre via a crupiê logo que chegava no cassino saindo de manhã do cassino para ir para a casa. Só não acontecia durante as segundas-feiras por causa do fechamento deste para limpeza, etc.


                                         IV


  Enquanto abotoava o seu colete e tirava de sua algibeira o relógio para checar as horas, teve um estremecimento leve e particular; por que não pedi-la em casamento?
  Chegou na hora de costume, bem cedo. Passou a noite inteira indiferente no canapé, menos quando a crupiê se preparava para sair. Levantou-se e foi até ela. Um segurança que ali estava interceptou-o. O acompanhou até a saída. Quando chegavam perto da saída ele o ameaçou de não mais permitir a entrada de tão estranho cavalheiro que nunca apostava. Ele conseguiu sub-julgar as idéias do segurança dizendo que iria começar a apostar dali em diante. Deste modo pode entrar de volta no cassino. Voltando para a sala, reparou que ela já havia deixado esta. Então foi perguntar a uma funcionária por onde a crupiê estaria. Avistou ela na rua. Com um resto de coragem que a vida lhe deixara foi até o ponto em que a já senhora e não mais crupiê se preparava para tomar o ônibus com destino a sua casa. Ele a interpelou e começaram a conversar. Por sorte ela era simpática. Ele ficou sabendo depois que ela era viúva e que era mãe de dois filhos pequenos. Ela contou a ele que trabalhava de madrugada para poder sustentar eles e a si própria. Por fim seu ônibus havia chegado, ela aliviada se despediu com um sorriso de despeito por tê-lo aturado neste pequeno período mais íntimo entre os dois. 


  Na manhã seguinte ele chegou no horário de costume, se lembrando do fato de que sua permanência estaria comprometida caso não apostasse. Resolvera apostar algo, apostar tudo. E segundo seu pensamento concluiu que se caso ganhasse, ganharia ela, filhos e um lar completamente renovado. Por isso fez uma letra com os bens que possuía  logo após o encontro com ela no dia anterior indo visitar uma casa de câmbio. 


  Ele tinha um trunfo, que era a Dama de Copas. Começou a apostar e teve uma sorte inicial. Ganhou nas primeiras apostas, mas após duas horas de jogo ininterrupto acabou perdendo todo o dinheiro da qual dispunha consigo. Intrepidamente tirou do bolso do colete a letra. Jogou-a na mesa de apostas. Um riso irônico se percebeu passando por entre um dos apostadores, ele olhou mas não conseguiu definir exatamente o que via. Pode-se ouvir abafadamente um suspiro já não tão indiferente no rosto da crupiê e seu semblante ficou triste, mas se refez instantes depois quando teve que organizar as fichas da próxima rodada. Ele finalmente perdera. A sua Dama de Copas fora ultrapassada pelo Às de Paus. Nesse momento uma estocada perpendicular atravessou o seu coração e veio vibrar em sua garganta tal como uma serpe agonizante.


  Foi uma infeliz coincidência a que ela presenciara e, logo a da sua ruína. Ele poderia morrer ali mesmo de desdém. E com aquele mesmo sorriso de despeito, assinava a sua derrota. Sentiu a letra afundar mais um pouco em seu peito. Olhou pra ela sendo guardada pela crupiê em uma caixa e então saiu com a ajuda do destino, mas de um destino que ele mal reconhecia. Não apenas perdia tudo o que possuía materialmente, como bens e dinheiro, mas também psicologicamente, por que afetava sua vida íntima que estava tentando planejar com a mulher que amava. Perdia uma mulher, filhos e isto o afetava profundamente em seu lado espiritual, trazendo à tona a perda de sua alma para o nada. Enfim a sua existência seria em vão e mal-calculada por conta de um jogo do destino.


                                        V


  Com um desfecho que já havia traçado caso algo não saísse conforme o esperado.  
  Arquitetara na saída do cassino o lugar em que iria acontecer, mas precisava sentir a sensação que mais lhe atrairia. Escolheu o beco que ficava a poucos metros dali. Indo para lá, foi repassando na memória tudo o que vivera até ali. Sonhos se transformando em ilusão, a paixão desabando por um precipício abaixo e a visão dela lhe confortava mas que ao mesmo tempo punha um ponto final e o enchia de coragem para finalizar aquilo da única maneira que ele achava como definitiva e que traria paz para todos os envolvidos. Alguns passos dados e ele apenas tinha ela no pensamento, o conhecimento que a existência dela lhe causava era um refrigério e apenas nutrindo ele nessas curtas passadas lhe dariam forças para continuar andando até o beco. Foi até o final dele e não tinha iluminação alguma em seu término. Ele se lembrou que ela sequer havia se despedido dele, afinal já eram até conhecidos. Isso o determinou a revirar os olhos para a luz que se insinuava pela entrada do pequeno beco. Quando chegou ao final do beco, tirou de seu colete uma pistola. Se matou com dois tiros. Na realidade apenas com um, que o feriu inicialmente pela lateral de sua cabeça, indo o projétil parar do outro lado da têmpora. O primeiro tiro fazia parte de seu teste e foi dado como uma experimentação, já que não iria confiar o término de sua vida a uma arriscada roleta russa. Não teria coragem de efetuar o suicídio caso o primeiro tiro falhasse. Pagaria um preço psicológico irreversível ao seu ver.  Enfim, já estirado no chão, a sua alma deve ter demorado para encontrar a luz. O local era escuro, a poucos passos dali um feixe de luz e mais além o cassino, essa devia ser a sua trajetória de volta ao cassino que o tanto lhe empolgara naquele breve e iludido período de sua vida, se despedindo em definitivo da crupiê que naquele instante trabalhava concentradamente e suas mãos trêmulas tocavam as cartas maquinalmente, de tempos em tempos ela levava discretamente elas ao peito para se certificar do que realmente estava sentindo. Pareceu sentir um leve e sussurrante toque no rosto no intervalo de uma partida. Então voltou novamente ao trabalho.


                                        VI


  Pela manhã, acharam um corpo ainda quente e transportavam-no quando passando pela calçada, a crupiê novamente se preparava para tomar o rotineiro ônibus que a deixaria seguramente em casa, vendo aquele corpo reconheceu-o e sentiu um arfar pelo peito mas apenas demonstrava fisicamente em gesto de desdém e de um notório alívio ao pedir licença a um dos enfermeiros da ambulância, pensando consigo mesma naquele infeliz jogador; ''ele não apenas apostara a sua alma, perdendo e deixando tudo o que possuía, seus desejos de vida e o pouco de lucidez e esperança que restava em seus lindos olhos, apostara para o nada a sua alma.''



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